terça-feira, 14 de junho de 2016

O Livro Fantasma - 1ª parte

(atribulações de um colecionador português)

No princípio não era o Verbo...
Podem achar estranho este início, mas garanto-lhes que é absolutamente verídico: no principio eu não lia...pela excelente razão de que não sabia ler! Mas adiante, que esta verdade lapalissiana não deve interessar a ninguém, por demasiado óbvia.

Depois, quando me comecei a interessar pelas imagens dos livros da Majora e pelas revistas da Orbis (editora brasileira que, nos anos 50 (!!!) traduzia e dava à luz as revistas e personagens americanas), que me liam, foi a descoberta de um mundo fascinante!

Daí à aquisição da leitura foi um passo: aprendi a ler com 5 anos e, quando a minha mãe saía comigo e me perguntava se queria um bolo, um chupa-chupa ou um livro… bem, adivinhem a resposta!

Continuei a ler, desta vez os títulos juvenis, ao longo de toda a minha adolescência. Tive até a duvidosa “honra” de me ser vedado o acesso aos livros da saudosa coleção Argonauta: um explicador de matemática que eu tive, senhor de rara inteli-jumência, descobriu um certo dia que eu tinha “demasiada imaginação”; por isso, dirigiu-se à biblioteca municipal do meu bairro e pediu-lhes que não me emprestassem os ditos... Uma vez que, nessa altura, não havia as campanhas atuais que pretendem aumentar a imaginação e estimular a leitura entre os jovens, e sendo que os adultos tinham sempre razão, foi o que eles fizeram. É claro que arranjei logo um amigo que andava na mesma explicação, requisitava os livros e mos dava, devolvendo-os pelo mesmo método (paz à inteli-jumência do homem, que a inteligência propriamente dita já tinha morrido há muito!).

Tive depois que ultrapassar outro Cerbero, na forma da minha mãe! Para ela, existiam duas atividades juvenis: o trabalho, consubstanciado em estudar o dia todo; e o resto, que incluía brincar, sair e ler. Claro que, como o dia não dava para tudo e o estudo era para ela prioritário, as minhas leituras começaram a ficar para trás.

Fui então obrigado a introduzir em casa livros à socapa; mas ela começou a revistar-me a mala à entrada. Era então um duelo de vontades e de imaginações: eu a descobrir processos de meter os livros em casa (deixá-los no patamar da escada ou na caixa do correio quando entrava, e ir buscá-los na primeira oportunidade; metê-los na cintura, da parte de trás; atá-los às pernas e braços, sob as mangas e as pernas das calças; etc.), ela a investigar, qual miss Marple… desse por onde desse, eu arranjava sempre meio de os contrabandear para casa!

Restava o problema de ler. Como eu tinha aulas logo de manhã, ela queria que me deitasse cedo, cerca das 10 da noite. Eu deitava-me e, quando tudo sossegava, acendia a luz e lia finalmente até às tantas! Mas ela começou a aperceber-se do esquema e a fazer raids ocasionais para ver se eu dormia mesmo. Eu ouvia-a e apagava a luz, mas ela apalpava o quebra-luz do candeeiro… como este era de metal, eu era apanhado, o que me valia uns estalos na cara!

Para repor a verdade-verdadinha, claro que também lia enquanto devia estudar… havia uma estante na casa de jantar mesmo ao lado da minha mesa de estudo, situação que eu aproveitava para ir “consultando” alguns textos de aventuras naquelas longas tardes da década de 60. Posso dizer que fui um “leitor clandestino”, o que, à distancia de cinquenta e tal anos, só aumenta as saudades e valoriza para mim o ato de ler.

Eu lia quase tudo. Nessa altura, deixados para trás os juvenis do costume, como Verne, Salgari, Stevenson, Marryat, já tinha há muito descoberto as delícias de Hamilton, Heinlein, Bradbury, Sturgeon, Clarke, eu sei lá o que mais!

Descobri a coleção Argonauta ainda na década de 50, com 4 ou 5 anos; o primeiro livro de que recordo a capa é o Sentinelas do Universo (argonauta nº16, de Eric Frank Russell). Mas nessa altura eu apenas contemplava as magníficas capas com desenhos de Pires de Lima e Cândido Costa Pinto...

Não me lembro quando li Estação de Trânsito, mas foi no volume duplo comemorativo dos 200 números da coleção Vampiro. Achei-o interessante, mas nada de especial (essa é ainda a minha opinião, Simak tem obras muito melhores). Passei depois por uma fase de desinteresse pela FC (mea culpa, mea maxima culpa...), e só muuuuuuito mais tarde me voltei a interessar pela mesma (não pela coleção em si, mas apenas pelos livros que nela me agradavam mais).

Só recentemente (2013) me mordeu novamente o bicho do colecionismo literário de FC. Foi dum momento para o outro (tipo coup de foudre), e levou-me a tentar obter os livros que tinham marcado a minha infância e juventude. Várias coleções, vários livros soltos, horas sem fim pelos alfarrabistas, muito dinheiro gasto - nada lamento! Para mim os livros constituem catalisadores de memória, trazendo-me de novo algo do que já passou e do que vivi.

Só muito mais tarde soube que existia uma edição singular do lido Estação de Trânsito. Que era muito raro, muito difícil de obter, tão mítico que alguns duvidavam da sua existência (qual Yeti ou monstro do Loch Ness), rapidamente percebi.

Nessa altura comecei a busca. Primeiro nos alfarrabistas; a maior parte nunca tinha ouvido falar disso; alguns confirmaram-me que era um livro muito raro. mudei o meu campo de busca para a internet. No OLX encontrei alguns anúncios, infelizmente já fechados e datando de há anos. Mas também encontrei o site do meu atual amigo, João Vagos, ele também um ardente amante de FC e que disponibilizou o video que agora lhes indico: https://www.youtube.com/watch?time_continue=7&v=hOMRzNEP5wQ 

Foi ele quem me estimulou, indiretamente, a não desistir. Chegado a essa fase de apetência, nada me faria parar! Passei então a pesquisar o livro nos sites brasileiros. Encontrei algumas referências aqui e ali. Contactei então uma amiga brasileira, convenientemente livreira e prestável, a quem comuniquei a minha pretensão. Ficou com a referência, e eu com a promessa de me contactar se algo aparecesse.

E apareceu! Um belo dia, recebo um email a dizer que um cunhado dela, que tinha colecionado a Argonauta até ao número 300 e tal, queria vender os livros que possuía, entre os quais o 130 – A!

Confesso que duvidei. Estava habituado a vários falsos alarmes, e a tratar-se da edição dupla ou mesmo de mutilações da mesma (a metade FC, claro). Assim, pedi confirmação por fotografia. E lá me chegou ela, tratando-se de facto do mito em pessoa!

Dei imediatamente voz de prisão (perdão, de compra) ao livro, que me chegou cá por correio especial de corrida (uma pipa de massa!) e faz atualmente parte destacada da minha biblioteca (protegido por um envoltório plástico e acompanhado por uma pastilha de cânfora, para desencorajar o apetite dos peixinhos de prata!). E não contente com isso, a mesma amiga já me arranjou, por terras de Vera Cruz, outro exemplar para um amigo de cá! A respetiva foto pode ser vista no portal deste blog. Tchanan!

O facto de o livro aparecer maioritariamente no Brasil cada vez mais me convence de que se trata de uma edição feita com cadernos de sobras do Vampiro nº200 (como se atesta no rodapé dos próprios cadernos constitutivos), e destinada exclusivamente, por alguma circunstância editorial, à venda do lado de lá. Se foi assim ou não, ignoro. Procurei alguém que tivesse trabalhado na edição dos Livros do Brasil nessa época, mas não encontrei ninguém, toda a gente reformada ou falecida. Assim, se alguém souber dar mais alguma informação, chegue-se à frente e fale, ou cale-se para sempre!

(Continua)

6 comentários:

  1. Os meus sinceros parabéns ao meu amigo José Paula, pela iniciativa de partilhar connosco algumas das suas memórias relativamente à infância e à descoberta do seu gosto pelos livros! E por este blog, que tanto quanto sei é o único dedicado ao raro, raríssimo, quase impossível de encontrar nº130-A da Colecção Argonauta, um exemplar que ajuda a consubstanciar a magia e o mistério desta colecção fabulosa, que continua a viver nos nossos corações e no nosso imaginário. E, claro, nas estantes de alguns de nós!!!

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  2. Parabéns Amigo José Paula,

    Deliciei-me a ler todas as aventuras vividas em prol dos livros e pelo gosto pela leitura. Gostei tanto que quando cheguei ao (continua) fiquei com vontade de mais. Vou ser um ávido seguidor do blog e continuarei na busca do famoso 130-A.

    Abraço.

    António Almeida

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  3. Está fantástico! Parabéns!

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  4. Este comentário foi removido pelo autor.

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  5. Atualização do autor: à data, seis anos passados,já arranjei mais 6 (seis) exemplares do dito para amigos e clientes, isto é, uma média de 1 exemplar por ano. Impossível não é, mas está a tornar-se cada vez mais difícil, havendo tipos que pedem um preço completamente ridículo pelo livro (tipo 3000€). Livra!!!

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  6. E acabei na semana passada de receber mais um livrinho 130-A. É o 7º recebido e o 8º descoberto em terras de Vera Cruz. esta discrepância deve-se ao facto de que um deles vinha despachado no camião dos correios do Brasil, destinado a mim, claro, mas no meio do caminho o camião foi roubado e desapareceu para nunca mais ser achado! Esta é uma história verídica! E é tb claro que já o vendi, tendo ajudado a completar a coleção dum amigo. Tchanan!

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